domingo, 8 de setembro de 2019

Pelos Tufos - Conto

Conto: Pelos tufos
IA. Santos



A gente se conheceu na faculdade, Kim era metida a artista, coisa de gente de humanas. Ela amava escrever poemas e ficar lendo best sellers americanos como se fossem clássicos ao estilo "O Cortiço".

Eu não lia muito e arte nunca foi comigo. Por isso esse texto cheio de erros. Eu estava no 3° ano do curso de física. Eu só a via de longe com seus lindos olhos enormes azuis e seus cabelos loiros.

Aquele típico padrão de beleza que toda mulher quer ou tem inveja por não ter, ou aquela garota que você sabe que nunca conseguirá ao menos tentar, principalmente se você é um nerd com uma camisa do Star Wars e uma maçã na mão.

Foi assim que eu fui falar com ela pela primeira vez. Ela sentada debaixo de uma árvore e eu disse: uma maçã e uma árvore, qual o meu curso?

Ela disse sem titubear: Steve Jobs, Ciências da computação.

Eu disse que era de física e o cenário era do Newton, Isaac Newton. Ela não conhecia a história da maçã e disse:

Puxa, legal!

E voltou a ler. Sempre tinha alguém tentando conhecê-la. Eu então fiz o que minha mãe me ensinou quando tinha comida: ofereci a maçã pra ela.

Ela aceitou e começou a comer na hora. Eu agradeci não sei porquê e fui embora com fome.

Um ano depois ela me deu 54 maçãs, queria dar 365, mas comprou uma maçã por semana. O preço tava caro, segundo ela.

Depois disso ela me procurou perguntando meu nome e assim começamos a conversar.

Ela era incrível. Nós conversamos muitas madrugadas a dentro por mensagens. Depois passamos pra ligações. Depois todo dia depois da aula íamos conversar debaixo daquela mesma árvore.

Essa amizade durou um ano e em 364 dias desse ano eu fui burro em ter caído na friendzone.

Foram ao todo 9 caras.

Eram 9 que davam em cima dela.

Eu era praticamente o amigo gay. O dolorido é que ninguém suspeitava que eu a amava.

Muito menos ela.

No dia do meu aniversário ela me deu as 54 maçãs e duas exatas semanas depois ela fez aniversário, e dei um livro da bibliografia de Isaac Newton. Nele havia um anagrama em todas as 234 páginas, com uma letra em cada página que dizia que eu a amava.

Eu sabia que ela nunca leria o livro.

Dois dias depois ela me liga dizendo que tá mal. Na vida de um homem, isso sempre é inesperado. Ninguém quer ouvir sua maior paixão, seu maior amor, dizer que tá mal.

Ela então foi levada pro hospital, e eu, com certa intimidade com a família, cheguei depois.

Ela foi internada em coma com os pulmões em um estado crítico.

"Sr. Ela fuma?" "Você tem certeza?" "Vocês já ingeriram..."

Era uma tonelada de questões que os médicos faziam pra responder uma única pergunta: como Kim ficou mal de repente?

Duas semanas ela saiu do coma e estava consciente com os pulmões melhores, mas aí veio o resultado: Kim estava com câncer. E a demora pra esse diagnóstico só causou uma metástase, ou seja, o câncer tinha se espalhado em Kim que nem uma larva em uma maçã...

Pulmão e Rim afetaram toda a força do coração de Kim. Assim, todos imaginavam o pior da história no fim.

Estava sentado do lado dela quando os pais e o dr. entrou e disse: Você tem câncer.

Ela não chorava há 7 anos, segundo ela. Nunca a vi chorar. Ela era delicada e fofa, mas não chorava. Mas foi a primeira vez que a vi soluçar e chorar.

Minha amiga entrava num ponto que não tinha mais volta. De forma inesperada, ela estava morrendo. Talvez a gente nunca espera a morte. A maior certeza da vida é a morte e a ironia está no ponto onde não esperamos e não estamos prontos a ela.

A cada dia no hospital eu pensava em nossos dias felizes. Desde o dia 01 de dezembro, o dia da maçã, como chamamos, eu nunca passei um dia sem ter vontade de falar com ela. Até mesmo quando discutíamos pois eu queria jogar na cara dela que eu estava certo. E depois queria pedir desculpas por achar que tava certo.

A gente se dava tão bem que todos diziam que éramos namorados. Ela só ria e dizia pra mudar de assunto. Ela era ótima nisso.

Mas os dias felizes se passaram tão rápido e esses dias no hospital foram tão lentos... Uma grande oportunidade pra aproveitar o momento com ela.

Todo dia de visita eu era o último a entrar, deitava na cama e fazia cafuné, enquanto ela recitava um de seus poemas horríveis.

Um dia ela recitou "E a pedra chorou". Eu nunca entendi esse poema. E enquanto eu estava fazendo cafuné em seus cabelos, ela de olhos fechados recitava e interpretava aquela porcaria de poema maldito e eu ouvia aquela merda e não consigo lembrar de uma palavra daquela porcaria de poema, só lembro que quando olho minha mão ela estava cheia de cabelo solto e eu começo a chorar. Eu não aguento. Eu tento disfarçar, mas ela percebe meus "sniffer" e diz "que foi, amor?"

Por que ela me torturava assim? Eu não podia dizer a ela que o cabelo dela tava caindo porquê aquele momento... o nosso momento. Era o único que ela esquecia que tinha câncer e que estava gradativamente morrendo mais rápido. Não tinha nem um mês que ela fez aniversário... Tinha passado só 25 dias!

Eu choro que nem uma criança pela friendzone, pela saúde dela, por ela sofrer e principalmente por saber que ela iria sofrer muito ainda. Muito ainda. E tudo isso sem enxugar a merda dos meus olhos enquanto ela olhava pra mim sem entender nada. Eu choro muito só de lembrar essa merda! Não posso mais chorar com isso.

Não devo!

Então ela põe a mão no seu cabelo e arranca uns tufos. Simples assim, como se soubesse. Na vida de um homem, de um humano, ninguém quer ver aquela pessoa que você mais ama se descabelar enquanto grita "eu vou morrer!"

Ela começa a puxar com força os cabelos e gritar desesperada, eu a abraço forte e tiro as mãos de seus cabelos. Os médicos entram e eu faço um sinal que tá tudo bem. Acho que foi nessa hora que esse nerd com a camisa de Star Wars virou homem.

No dia seguinte ela não queria que seus pais, seus amigos ou mesmo eu, a vissem.
Perder os cabelos loiros foi um baque enorme. Não era só visualmente, por favor, não seja ignorante. Mas era uma variável de uma equação muito maior do que a beleza. Perder o cabelo significava que ela realmente tinha câncer e agora não tinha como não fingir para as pessoas. Significava que ela podia morrer mesmo! Significava que ela não era mais a mesma. Significava que nem eu, nem ela e talvez só Deus pudesse fazer alguma coisa. Ninguém mais.

Ter a confiança dos pais do seu amor é uma coisa que toda pessoa deve sonhar. Nunca me esquecerei quando os pais de Kim olharam pra mim nesse momento e disseram "Se você disser que ela está linda, ela vai acreditar em você. Só você pode fazê-la acreditar. Dê forças a ela!"

Eu fui. Sem a supervisão dos médicos e enfermeiras, entrei na sala e ela estava virada pra janela de costas pra porta.

Eu andei até a cama e sentei, pelo susto, Kim virou drasticamente e olhando pra mim com aqueles ainda brilhantes olhos azuis cheios de lágrimas.

Eu a beijei na boca como se fosse a última e primeira vez.

Não seja estúpido em achar que foi só um beijo. Não pense que me aproveitei dela e não pense que eu calculei isso! Foi um fenômeno físico! Foi natural! Foi espontâneo! Eu a amava e ela estava morrendo e então eu não pensei duas vezes! Não foi só um beijo...
Representou que ela ainda estava bonita e que todos que a amavam a viam da mesma maneira. Não, não...
Viam uma garota mais forte do que nunca. Não foi só um beijo! Foi minha declaração de amor. Não foi só um beijo! Foi uma forma de dizer que ela podia confiar em todos e confiar em si mesma!
Não seja tolo em achar que foi só um beijo, pois todos sabem que não foi, menos ela...

Ela incrivelmente agiu naturalmente.

Não esboçou um sorriso, olhou pra mim que nem bebê quando tentamos fazer rir e ele não acha graça.

De cada 10 pessoas que conheciam Kim, 10 não fariam piada com ela naquele momento. Eu não. Depois do beijo eu disse:

"Esse beijo foi tão incrível que você ficou arrepiada dos pés a cabeça!"

Ela não disse nada.

"Força na peruca, Kim, você perdeu sua língua com o beijo?"

Ela não esboçou um movimento no rosto.

"Você parece a Tilda Swinton no Doctor Strange. Faz assim:"

Nesse momento eu comecei a gritar "Eu sou a anciã!" e tentar fazer um portal enquanto fazia "shhii" com a boca.

Eu parei e olhei pra ela que estava com o rosto cheio de lágrimas.

Ela riu. Como eu tinha esquecido o quão bom é ouvir ela rindo! O quão bom é fazê-la rir!

"Só você pra me fazer rir!"

Era ótimo. Não precisávamos discutir nossa "relação amorosa". Eu só precisava fazê-la rir. Ela precisava de um amigo, eu seria. Ela precisava de um enfermeiro, eu seria. Ela precisava de um ouvinte de poemas, eu seria. Sempre sempre e sempre! Eu a amava e amar é ser a ferramenta da felicidade, nem que isso desgaste a sua ponta!

Os dias nunca mais foram os mesmos...

A metástase agora do rim da Kim ia pro fígado. Ela detestava fígado! Do fígado descobrimos que ia pro ovário. Ela não podia ter mais filhos. Ela só estava lá há um mês e uma hecatombe surgiu na menina! Eu não entendia nada!

A gente queria só ir no cinema e conversar sobre maçãs, mas ela não podia ter filhos, e vai se danar que essa frase não fez sentido, porque quer ver outra coisa que não faz sentido? A merda do amor que me faz chorar que nem agora! A gente ama e não é correspondido, e quando é, seus pais se separam. E quando é, sua quase namorada sofre e seu maior sonho é totalmente destruído e ela não sabe. Ninguém tem coragem de contar e ninguém me deixa contar! Nunca vai poder ser mãe, nunca poderá dar de mamar, nunca vai poder ensinar suas filhas a cozinhar arroz ou fígado acebolado!

Ela odiava fígado, por quê ter câncer lá?

Nada fazia sentido pra mim! É horrível vê-la assim! Ela tava horrorosa. Magra, sem brilhos nos olhos. Cheia de dores...

De dia só queria dormir e tomar morfina. Mas só vomitava. De noite dormia mal e sofria com dores...

E puxa, como ela era incrível. Fazia piadas ainda! Estava mais forte a cada órgão que adoecia!

Ela era popular e ganhava 5 horas extras semanais no horário de visita. Ela recebia tanto bilhetes e tantos buquês que não cabiam no quarto compartilhado com uma senhora com mal de Alzheimer.

Então, o pai dela pagou uma fortuna pra ela ter mais horário de visita e um quarto próprio. Ele era pobre, mas nunca quis minha ajuda nas despesas médicas.

Sempre foi Kim e eu. Eu e Kim. Nem conversávamos mais.

5 semanas depois que tudo isso começou, ela piorou. UTI. Unidade de Terapia Intensiva. Aprendi que isso é uma das coisas que só aprendemos o nome depois de passarmos por uma experiência dessas.

Lá, os médicos, que sempre foram fantásticos no atendimento, embora agravaram o estado dela não diagnosticando a bichinha logo, iriam fazer um tratamento novo nela. Ela só devia ter mais uma semana de vida. Previsão.

Vê a sua pessoa que você mais ama e que você passou excelentes momentos juntos entubada, é uma das coisas mais tristes que um humano pode passar.

Eu briguei com os pais dela.

Eu tinha ido incansável nessas 5 semanas e por isso eu tomava um lugar de algum parente distante que nunca ligava pra Kim. Agora que a Kim iria morrer eu tinha que ceder a merda do lugar, a merda do horário de visita pra uns puta de uns merda de parente hipócrita que nunca amaram a menina, simplesmente pra eles se despedirem dela!

Minha última semana com minha Kimzinha e eu sou proibido de vê-la?

Eu fiz um escândalo!

Mas fui embora com a última imagem de Kim entubada...

Eu não podia fazer mais nada.

5 semanas e 6 dias que tudo começou eu estava desempregado, justa causa. Ausências múltiplas.

Nesse mesmo dia eu recebo a ligação que Kim foi transferida e seu estado é grave e uma cirurgia emergencial de última hora estava acontecendo e definiria se ela viveria ou não, e eu deveria ir lá naquele momento.

Eu peguei meu carro e fui. Sabe quando você se forma na escola e na formatura você olha pros seus amigos e percebe que você nunca mais os verá? A morte é assim, é ter e saber que você não terá mais. É saudade. Ela te pega de surpresa como um ônibus desgovernado que desce a rua e colide no seu carro enquanto você chora, prensando seu carro num poste. É inesperado. É rápido. É a maior certeza da vida e ninguém nunca espera. Ninguém. Nem mesmo quando você corre por causa dela...





23/12/2016




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